domingo, 21 de maio de 2023

BABA YETU

Não consigo ouvir isto sem me comover profundamente. Nos tempos que correm, bem que precisávamos de um Deus a quem pudéssemos chamar nosso e pedir-lhe o remédio para todos os nossos males. Mas os deuses não querem saber de nós, apesar de todas as coisas belas que o Homem fez em nome deles...

Baba Yetu! Baba Yetu!
(oiçam com fones)


"Baba Yetu" é a faixa de abertura do primeiro álbum de Christopher C Tin, "Calling All Dawns". A letra é uma tradução para Suaili (Swahili) da oração Pai Nosso. A música foi originalmente composta para o jogo Civilization IV.


Pai nosso, nosso
Baba yetu, yetu uliye
Nosso céu, nosso, amém
Mbinguni yetu, yetu, amina

Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe
Pai nosso, nosso
Baba yetu, yetu uliye

Nosso céu, nosso, amém
Mbinguni yetu, yetu, amina

Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe
dai-nos hoje o nosso alimento
Utupe leo chakula chetu

Precisamos que você nos perdoe
Tunachohitaji utusamehe

Nossos erros, ei
Makosa yetu, hey

Como nós os perdoamos
Kama nasi tunavyowasamehe

Aqueles que nos injustiçaram, não nos machuquem
Waliotukosea, usitutie

Na tentação, mas
Katika majaribu, lakini

Salve-nos, e ele, para todo o sempre
Utuokoe, na yule, milele na milele

Pai nosso, nosso
Baba yetu, yetu uliye

Nosso céu, nosso, amém
Mbinguni yetu, yetu, amina

Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe
Pai nosso, nosso
Baba yetu, yetu uliye

Nosso céu, nosso, amém
Mbinguni yetu, yetu, amina

Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe
Que venha o seu reino
Ufalme wako ufike utakalo

Que assim na terra como no céu seja feito amém
Lifanyike duniani kama mbinguni, amina
Pai nosso, nosso
Baba yetu, yetu uliye

Nosso céu, nosso, amém
Mbinguni yetu, yetu, amina

Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe
Pai nosso, nosso
Baba yetu, yetu uliye

Nosso céu, nosso, amém
Mbinguni yetu, yetu, amina

Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe
dai-nos hoje o nosso alimento
Utupe leo chakula chetu

Precisamos que você nos perdoe
Tunachohitaji utusamehe

Nossos erros, ei
Makosa yetu, hey

Como nós os perdoamos
Kama nasi tunavyowasamehe

Aqueles que nos injustiçaram, não nos machuquem
Waliotukosea, usitutie

Na tentação, mas
Katika majaribu, lakini

Salve-nos dessa calamidade para sempre
Utuokoe na yule msiba milele
Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe
Pai nosso, nosso, que estais
Baba yetu, yetu, uliye

Que seu nome seja glorificado
Jina lako litukuzwe


A PROPÓSITO DE UM QUADRO

Há uns anos pintei uma tela que inicialmente teria o título de “O Naufrágio”. Fiz os esboços conforme a ideia me ia aparecendo cá dentro: um momento trágico onde tudo desaba, se escangalha e se reduz a pequenos restos que deixam de ter qualquer valor. Naquela altura estava numa fase em que fazia sentido pintar um quadro a óleo assim. Lembro-me bem.

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Quem já pintou a óleo sabe que é um processo lento que tem tempos certos, pausas longas para secagem das tintas, enormes períodos de preparação dos materiais e, depois, de limpeza de pincéis e outros utensílios. Não é fácil pintar um quadro a óleo num só dia. Este durou semanas de trabalho, como é hábito com os meus quadros.

E foi assim que um quadro que começou por ser uma história de um naufrágio acabou chamando-se “A Tempestade”. Ao longo do processo preferi contar a história da tormenta destruidora, mantive o pobre barco a navegar e, apesar dos estragos, nele pode ler-se que (à direita e à esquerda) já se podem ver nesgas de sol que, como sempre, fazem renascer a esperança…

  
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Tenho esse quadro na minha sala. Todos os dias olho para ele como se olha para um espelho. Vejo cicatrizes, nódoas negras e todas as mazelas do mundo. Mas não vejo nenhum cadáver nem nenhum barco afundado. Nas minhas tempestades não existem danos irreparáveis. E, enquanto eu puder decidir sobre os quadros que pinto, assim continuará a ser.

Veja mais quadros pintados por mim neste link https://dataveniapt.blogspot.com/p/pintura.html

   
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sábado, 6 de maio de 2023

LISBOA COM SOL

É um disparate falar da (tão famosa) luz de Lisboa sem falar das sombras de Lisboa. Aliás acho mais interessantes as sombras desta cidade que emprestam à sua claridade um elegante encanto de vestido de cerimónia. Mas isso sou eu a pensar cá numas coisas que não posso confessar porque ainda não prescreveram...



quarta-feira, 26 de abril de 2023

1958

 It was a very good year! 

Há muitos anos atrás (há mais de quarenta) fui à sede do Diário de Notícias, um lindíssimo edifício no cimo da Av. da Liberdade em Lisboa e, recorrendo ao arquivo do jornal, pedi à senhora de estava de serviço o exemplar do dia 9 de Julho de 1958. Queria saber o que tinha acontecido nesse dia, o dia do meu nascimento. Já não me lembro do que apurei na altura. Mas não devia ser grande coisa. O DN não tinha os meios que estão agora ao meu dispor. Agora, com apenas alguns momentos de de pesquisa fiz o que há anos atrás demoraria semanas. Eis o que descobri acerca de 1958, o ano em que me puseram no mundo:  

Neste ano, logo no dia 1 de Janeiro, é fundada a CEE - Comunidade Económica Europeia. Elvis Presley é integrado no Exército Americano passando a ser o soldado nº 53310761 e Nikita Krushchev assume a liderança da União Soviética. É fundada a BBC e Fidel e Guevara tomam Havana.

O Brasil ganha o Campeonato do Mundo derrotando a Suécia por 5 a 2 e os Beatles, na altura ainda com o nome de The Quarrymen (para quem não sabe, “Os Pedreiros”, esta gente tinha uma certa queda para arranjar bons nomes, não era?), gastam 17 xelins e 6 pence para gravar o primeiro disco. De um lado, “That’ll Be The Day” (de Buddy Holly), do outro, “In Spite Of All The Danger” (de MacCartney e Harrison). Ainda no Reino Unido Isabel II dá o título de Príncipe de Gales ao seu filho Carlos e à sua descendência.

Nos Estados Unidos da América é criada a NASA (National Aeronautics and Space Administration) e, no outro lado do Mundo, os Chineses tomam o Tibete.

É exibido o primeiro episódio de Tom & Jerry e é publicado nos EUA o controverso romance “Lolita”, de Nabokov.

Começa a primeira Guerra do bacalhau entre o Reino Unido e a Islândia (houve mais do que uma? alguém já tinha ouvido falar duma guerra destas? quantas é que foram? guerras do bacalhau? sem Portugal ao barulho?), Charles de Gaulle é eleito presidente de França e é descoberta a magnetoesfera. O ano de 1958 é o primeiro em que, na travessia do Atlântico, o número de passageiros transportados por ar excede o número de passageiros transportados por mar.

Morre Pio XII e é eleito João XXIII, o Raly de Inglaterra tem a sua primeira edição e o romance “O Leopardo” de Lampedusa tem a sua primeira edição.

O Mundo fica mais bonito: no Rio de Janeiro nasce a Bossa Nova, com a gravação de “Chega de Saudade” de João Gilberto.

Nascem Michael Jackson , Prince e Madonna que não precisam de apresentações, Eugénia de Melo e Castro (não há anos perfeitos), Cazuza (o célebre compositor brasileiro e vocalista dos “Barão Vermelho” autor dos êxitos "Codinome Beija-Flor" e "Faz Parte do meu Show"), Kate Bush (da voz fininha que cantou um dos slows do meu tempo, o célebre ““Wuthering Heights”), Andrea Bocelli, Maitê Proença (ela é assim tão velha? da minha idade?), a fantástica Sharon Stone (as mesmas perguntas, as mesmas desilusões!), a campeoníssima Rosa Mota e o basquetebolista Carlos Lisboa que foi campeão nacional pelo Queluz e que conheci numa inesquecível noite ao balcão da “Manhattan”, a também inesquecível discoteca da Parede.

Morrem Vasco Santana que se despede prematuramente em Lisboa e o Vulcão dos Capelinhos, nos Açores que tem a sua última erupção. O Bispo do Porto entra em ruptura com Salazar com o envio da célebre carta de 13 de Junho e em Angola nasce a UPA (União dos Povos da Angola) de Holden Roberto.

Estreiam-se os inesquecíveis “Cat on a Hot Tin Roof” (“Gata em Telhado de Zinco), de Richard Brooks, com Elizabeth Taylor e Paul Newman, o “Drácula” de Terence Fisher, com Peter Cushing e Christopher Lee, o incrível “Man of the West” (“O Homem do Oeste), de Anthony Mann, com Gary Cooper e Julie London e o fabuloso “Vertigo”, de Alfred Hitchcock, com James Stewart e Kim Novak.

 A canção "Nel blu dipinto di blu" (que em português quer dizer "No azul, pintado de azul”) conhecida por “VOLARE”, ganha o primeiro GRAMMY da história. São gravadas pela primeira vez “Tequila”, “Sweet Little Sixteen” e “Johnny B. Goode”, ambas de Chuck Berry, “Chanson d’ Amour”, “Tea for Two”, “You are my Destiny” de Paul Anka, “Fever” da Peggy Lee, “Good Golly, Miss Molly” e “Devoted To You”…

Numa entrevista realizada no café Chave de Ouro, Humberto Delgado profere a célebre frase “Obviamente demito-o!”, referindo-se a Salazar. Todos sabem o que aconteceu, de seguida, ao General Sem Medo…

A 9 de Julho, na Clínica do Dr. Durão, no Caminho de Santo António, na lindíssima cidade do Funchal, nasce o autor destas linhas. A 25 de Dezembro, em todo o território nacional, é celebrado o dia de Natal e a 31 de Dezembro termina o ano para a maior parte da população do planeta.

Digam lá se não foi um ano em cheio…

terça-feira, 25 de abril de 2023

OS SONETOS DE VINICIUS

Hoje caiu no meu colo uma oportunidade de rever os sonetos do VINICIUS DE MORAES. Surpreendentes, eruditos.  Brilhantes numas vezes, repletos de escuridão noutras...

Partilho aqui apenas três exemplos. Sentem-se e apertem os cintos...


Soneto do Corifeu

São demais os perigos desta vida
Para quem tem paixão, principalmente
Quando uma lua surge de repente
E se deixa no céu, como esquecida.

E se ao luar que atua desvairado
Vem se unir uma música qualquer
Aí então é preciso ter cuidado
Porque deve andar perto uma mulher.

Deve andar perto uma mulher que é feita
De música, luar e sentimento
E que a vida não quer, de tão perfeita.

Uma mulher que é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento
Tão cheia de pudor que vive nua.




Soneto da Separação

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma
E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente, não mais que de repente.


 



Soneto de Fidelidade

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor que tive:
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

LINGUAS DIFÍCEIS?

É um tema recorrente: Há línguas mais simples do que as outras? 
Há línguas mais fáceis do que as outras?

Por exemplo: os portugueses teimam em achar que o alemão é mais difícil do que o inglês, por causa da "gramática mais complicada" pelas declinações, etc. Mas tal não é verdade. De facto o inglês tem uma razão histórica para ser uma língua "mais simples" do que as suas "colegas" europeias. Sobre esse assunto estou a preparar um post que editarei mais tarde. Mas isso não significa que o inglês seja mais fácil do que o alemão. Se assim fosse as crianças inglesas começariam a falar mais cedo do que as alemãs ou, pelo menos, alcançariam o domínio avançado da língua mais cedo.

Todos os estudos sobre a matéria dizem o contrário: com todas as línguas (refiro-me às europeias, sobre as outras não emito opinião) as crianças aprendem a falar na mesma altura e chegam ao domínio avançado da língua em média ao mesmo tempo.

O que acontece é que algumas línguas são mais próximas da nossa língua materna e por isso as achamos "mais fáceis" ou "mais simples"... as outras, com regras diferentes, achamos "mais difíceis"...

Podemos ficar descansados: no campeonato da dificuldade, a língua portuguesa não perde com nenhuma! Mas também não ganha... é um empate generalizado!!!


Publicado pela primeira vez em 2012.

A QUINTA DOS SONHOS

 Visita à Quinta da Regaleira, em Sintra.

No passado fim-de-semana visitei pela terceira vez a Quinta da Regaleira, em Sintra. Não vou arriscar uma descrição porque podem tê-la em www.regaleira.pt. Queria apenas dizer-vos que, se acaso duvidam de que existem sítios mágicos, daqueles que nos contam histórias sem palavras, que nos enchem com as suas luzes e as suas sombras, então vão lá espreitar.

Numa tarde de um dia ameno (desaconselhável em Agosto ou em alturas de muito frio ou chuva), leve as crianças e prepare-se para 3 horas de visita a um universo paralelo, mandado construir no início do séc. XX pelo enigmático Monteiro dos Milhões, com o projecto do Manini (também foi arquitecto do Hotel do Buçaco, que também recomendo e do qual também tenho uma fantástica foto-reportagem que talvez publique aqui!). Um universo cheio de segundos sentidos, de mistérios, de sussurros... coisas inexplicáveis ou levemente compreensíveis (como o Poço Iniciático para onde se desce 27 metros por uma escadaria circular e assim se atinge o escuro da morte simbólica e, depois, se caminha em direcção ao renascimento  que nos faz passar um fantástico lago com um misterioso caminho-das-pedras que só é possível percorrer se o caminho for iniciado com o pé direito...

Aconselho a que, na primeira vez, faça a visita guiada. Os detalhes que os guias dão ajudá-los-á a usufrir da Quinta da Regaleira nas visitas seguintes. Localização, preços, contactos e uma competente apresentação no site www.regaleira.pt.

Conselhos: roupa e calçado confortáveis, água, (não são permitidas merendas mas há por lá um simpático café!), 3 horas de percurso e pilhas novas na máquina fotográfica. Desta vez tirei 830 fotografias...




Publicado pela primeira vez em 2012

sexta-feira, 21 de abril de 2023

A SOMBRA DO VENTO, de Carlos Ruiz Zafón

Um romance de Carlos Ruiz Zafón.

Às vezes as coisas organizam-se de modo a que nos caia no colo um livro destes. Memorável!

Carlos Ruiz Zafón é um romancista nascido em Barcelona e não é nenhum estreante. Autor de outros romances editados com largo sucesso e uma colecção de prémios que é uma boa legenda para o seu talento. Pelo que apurei, o seu seu último romance, "O Jogo do Anjo", já atingiu a espantosa marca de um milhão de exemplares vendidos em Espanha (aproximadamente 1 livro vendido por cada 40 espanhóis!).

Zafón vive actualmente em Los Angeles e trabalha como argumentista de cinema. Em "A Sombra do Vento" escreve sobre aquilo que melhor conhece: Barcelona e livros.

Uma história onde a imaginação se cruza com a erudição. Um exemplo de que, afinal, é ainda possível inventar um enredo inovador. E um exemplo de que se pode escrever uma "história de aventuras" com a carga cultural de um "guia turístico" que nos mostra Barcelona na primeira metade do século passado com os olhos de um apaixonado por livros. Uma trama onde não se sabe onde começa a realidade e termina a acção de um misterioso romance, esse mesmo também intitulado de "A Sombra do Vento".

Deixo-vos com algumas passagens...

(...)  
"Porque eu não tenho pressa, sabe? Há por aí patêgos que acham que se puserem a mão no cu de uma mulher e ela não se queixar, já a têm no papo. Aprendizes. O coração da fêmea é um labirinto de subtilezas que desafia a mente grosseira do macho trapaceiro. Se quiser realmente possuir uma mulher, tem que pensar como ela, e a primeira coisa é conquistar-lhe a alma. O resto, o doce envoltório macio que nos faz perder o sentido e a virtude, vem por acréscimo.
Aplaudi o discurso com solenidade.
- O senhor está um verdadeiro poeta, Fermín.
- Não, eu estou com Ortega e sou um pragmático, porque a poesia mente, embora em bonito, e o que eu digo é mais verdade que o pão com tomate. Já lá dizia o mestre, mostre-me um dom-joão e eu mostro-lhe um mariconço disfarçado. Para mim é a permanência, o perene. Tomo-o a si como testemunha de que farei da Bernarda uma mulher, senão honrada, porque isso já ela é, pelo menos feliz."
(...)
"- O Julián vivia portas adentro, para os seus livros e dentro deles, como um prisioneiro de luxo.
- Diz isso como se o invejasse.
- Há prisões piores que as palavras, Daniel."
(...)
"Abateu-se a tarde quase à traição, com um hálito frio e um manto púrpura que resvalava entre os resquícios das ruas."
(...)
"Suspirei. Amparava-nos o anoitecer e aquele silêncio de abandono que une os estranhos, e senti-me com coragem para dizer não importava o quê, mesmo que fosse pela última vez."
(...)
"- E como me vês tu a mim?
- Como um mistério.
- Esse é o elogio mais estranho que alguma vez me fizeram.
- Não é um elogio, é uma ameaça.
- Porquê?
- Os mistérios é preciso resolvê-los, averiguar o que escondem.
- Se calhar decepcionas-te ao ver o que há lá dentro.
- Se calhar  surpreendo-me. E tu também."
(...)
"- Olhe Daniel, na minha idade ou se começa a ver a joga com clareza ou está-se bem lixado. Esta vida vale a pena ser vivida por três ou quatro coisas e o resto é adubo para o campo. Eu já fiz muita tolice, e agora sei que a única coisa que quero é fazer a Bernarda feliz e morrer um dia nos braços dela.  Quero voltar a ser um homem respeitável, sabe? Não por mim, que a mim o respeito deste orfeão de macacos a que chamamos humanidade deixa-me completamente murcho, mas por ela. Ela é assim e eu gosto dela como ela é, sem que me mudem nem um pêlo daqueles que lhe aparecem no queixo. E por isso quero ser alguém de quem ela possa estar orgulhosa. Quero que pense: o meu Fermín é um pedaço de homem, como o Cary Grant, o Hemingway ou o Manolete."
(...)
"- Mas o homem é o Daniel e é a si que lhe cabe tomar a iniciativa.
Aquilo começava a adquirir um cariz funesto.
- A iniciativa? Eu?
- Que quer? Algum preço tinha de ter o poder mijar de pé."
(...)
"- Olhe Daniel. As mulheres, com notáveis excepções, como a sua vizinha Merceditas, são mais inteligentes do que nós, ou no mínimo mais sinceras consigo próprias sobre o que querem ou não. Outra coisa é que o digam a uma pessoa ou ao mundo. O Daniel está confrontado com o enigma da natureza. A fêmea, babel e labirinto. Se a deixa pensar, está perdido. Não se esqueça: coração quente, mente fria. O código do sedutor."
(...)
"Tomaz e eu ficámos sozinhos rodeados de um silêncio que prometia mais solidez que o franco suíço."
(...)
"- Diz-me cá, rapaz, já entraste alguma vez num Mercedes Benz? Pois já não é sem tempo. É como subir ao céu, mas não é preciso morrer."
(...)
"- Olhe, Daniel. O destino costuma estar ao virar da esquina. Como se fosse um gatuno, uma rameira ou um vendedor de lotaria: as suas três encarnações mais batidas. Mas o que não faz é visitas ao domicílio. É preciso ir atrás dele."
(...)

Ainda há livros assim.
Leiam. Vale a pena.


Publicado inicialmente em 2017. Entretanto Carlos Ruiz Zafón faleceu em 2020 em Los Angeles, EUA.